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Precatório – A perda da natureza alimentícia dos créditos objeto de cessão

GUSTAVO CALMON HOLLIDAY – Procurador do Estado do Espírito Santo
Tese defendida e aprovada no XXIX Congresso Nacional de Procuradores de Estado realizado no ano de 2003 em Aracajú-SE.

Sumário:
1. INTRODUÇÃO
2. DA EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA
3. PRECATÓRIO – breve noção
4. CRÉDITOS DE NATUREZA ALIMENTÍCIA NOS PRECATÓRIOS
5. DA PREFERÊNCIA DOS CRÉDITOS DE NATUREZA ALIMENTÍCIA NA ORDEM DE PAGAMENTO DE PRECATÓRIO
6. DA CESSÃO DE CRÉDITOS
7. ANÁLISE SOBRE A CESSÃO DOS CRÉDITOS ORIUNDOS DE PRECATÓRIO
8. A PERDA DA NATUREZA ALIMENTÍCIA DOS CRÉDITOS DE PRECATÓRIO OBJETO DE CESSÃO
9. CONCLUSÕES

1. INTRODUÇÃO
O pagamento por meio de precatório tem recebido inúmeras críticas nos últimos tempos, principalmente pela inobservância das regras inerentes à sua sistemática, resultando na não-inclusão no orçamento, com a conseqüente não- quitação, ou mesmo no excessivo atraso no pagamento dos valores nele consignados.

Certamente, a razão do problema não está no sistema de pagamento por meio de precatórios, mas sim no fato de não serem observados os prazos e regras dispostos na Constituição Federal.

O sistema de precatório surgiu justamente para evitar favoritismos no pagamento dos débitos das Fazendas Públicas: ficou estabelecido o dever de observância da ordem cronológica de apresentação para efeito de pagamento.

Posteriormente, e de maneira justa, estabeleceu-se que os credores de verbas de natureza alimentícia têm preferência no recebimento dos seus créditos relativamente aos de origem diversa. Ora, se a verba possui natureza alimentar, ou seja, destinada à manutenção, sustento, nada mais correto do que priorizar o seu pagamento.

Todavia, não se pode dar o mesmo tratamento privilegiado quando esses créditos que, inicialmente, servem ao propósito alimentar, forem objeto de cessão para terceiros, sempre com o propósito especulativo.

E esse é justamente o objetivo do presente estudo, ou seja, analisar a possibilidade e as conseqüências da cessão dos créditos alimentícios, oriundos de precatórios judiciais, que foram cedidos a terceiros.

Vale acrescentar, ainda, que o presente estudo visa não só discutir essa questão, mas também servir como subsídio na prática forense, haja vista acreditar no ineditismo da tese e nas conseqüências de ordem prática em favor das Fazendas Públicas.

2. EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA

Os débitos das pessoas jurídicas de direito público são executados por meio de procedimento próprio previsto no artigo 730 do Código de Processo Civil. A execução contra a Fazenda Pública segue esse rito haja vista a impenhorabilidade dos bens públicos em razão de serem, em regra, inalienáveis1. Apesar da possibilidade de alienação dos bens públicos dominicais2, essa alienação deve observar as exigências da lei, motivo pelo qual também são impenhoráveis.

Diante dessa premissa, na Execução por Quantia Certa Contra a Fazenda Pública, a citação é para opor embargos do devedor no prazo de 30 dias3, e não para pagar ou nomear bens à penhora. O procedimento do artigo 730 do CPC deve ser observado, inclusive quando se tratar de execução de crédito fiscal.

O TRF- 4ª Região editou a Súmula 58: “Súmula 58 do TRF-4ª Região – A execução fiscal contra a Fazenda Pública rege-se pelo procedimento previsto no art. 730 do CPC”

É importante salientar que havia divergência sobre a possibilidade de se executar a Fazenda Pública com base em título executivo extrajudicial, haja vista que o art. 100, caput, da Constituição Federal, faz referência apenas a sentença judiciária. Todavia, recentemente, o STJ pacificou a questão quando editou a Súmula 279, que dispõe: Súmula 279 do STJ – É cabível execução por título extrajudicial contra a Fazenda Pública.

Tratando-se de execução por quantia certa baseada em título judicial ou extrajudicial, a Fazenda Pública deverá apresentar embargos no prazo legal. Caso não sejam apresentados os embargos ou julgados improcedentes, o pagamento do débito deverá ser efetuado mediante precatório, conforme preconiza o art. 100 da Constituição Federal.

O § 3º do art. 100 da Constituição Federal, inserido pela Emenda Constitucional nº 30, excluiu do pagamento via precatório as obrigações consideradas de pequeno valor. Pequeno valor, por sua vez, foi definido recentemente por meio da Emenda Constitucional nº 37, de 12/06/2002, que inseriu o art. 87 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estipulando 40 salários mínimos quando se tratar de Estado e 30 salários mínimos quando se referir a Municípios, enquanto não houver lei que o defina. Relativamente à União Federal, pequeno valor foi definido pela Lei 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Federais, no seu art. 17, §1º, estabelecendo 60 salários mínimos.

Ressalte-se que nas demais modalidades de execução (entrega de coisa, fazer ou não-fazer), a Fazenda Pública fica submetida ao mesmo rito que as pessoas jurídicas de Direito Privado, observando-se, todavia, os Princípios que regem a Administração Pública.

3. PRECATÓRIO – breve noção

O precatório é uma forma de pagamento. O juiz da causa requisitará o pagamento por intermédio do presidente do tribunal competente, ou seja, tribunal ao qual o juiz estiver vinculado. Assim, se a causa for julgada pela Justiça do Trabalho, o juiz da causa requisitará ao presidente do Tribunal Regional do Trabalho respectivo, o pagamento. Se a causa estiver tramitando em uma Vara Federal, a solicitação será feita ao presidente do Tribunal Regional Federal. Se a causa tramitou em Vara da Justiça Comum, o pagamento deverá ser solicitado ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado. O Presidente, por sua vez, requisitará à Fazenda Pública devedora a verba devida ao credor, que deverá ser incluída no próximo orçamento.

A sistemática de pagamento por meio de precatório é criação nacional, não havendo esse procedimento no Direito estrangeiro. Foi incluída na Constituição Federal Brasileira de 1934, no seu art. 1824.

O sistema de precatório surgiu inicialmente limitado ao âmbito federal, com o objetivo de moralizar o pagamento das dívidas da Fazenda Pública Federal, pois dessa forma seria obedecida uma ordem cronológica de pagamento que evitaria o favorecimento de alguns credores em detrimento de outros.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou com relação ao tema: O sentido teleológico da norma inscrita no caput do art. 100 da Carta Política – cuja gênese reside, no que concerne aos seus aspectos essenciais, na Constituição Federal de 1934 (art. 182) – objetiva viabilizar, na concreção do seu alcance, a submissão incondicional do Poder Público ao dever de respeitar o princípio que confere preferência jurídica a que dispuser da precedência cronológica (prior in tempore, potier in jure). (STF – RE 188285-9-SP, Rel Min. Celso de Mello)

O rito de execução contra a Fazenda Pública é regulamentado no ordenamento jurídico nacional pelo Código de Processo Civil – Lei nº 5.869/73 – nos seus artigos 730 e 731, que permanecem em vigor até a presente data.

A Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 manteve a previsão do regime de precatório, inovando quanto à natureza dos créditos devidos pela Fazenda Pública, classificando-os em créditos de natureza alimentícia e créditos de natureza não-alimentícia.

4. CRÉDITOS DE NATUREZA ALIMENTÍCIA NOS PRECATÓRIOS

Inicialmente a Constituição Federal não especificou os créditos de natureza alimentícia, ficando a critério da Doutrina e da Jurisprudência apontar quais os créditos teriam essa natureza privilegiada.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 30 de 2000, o art. 100 foi acrescido do §1º-A que definiu os créditos de natureza alimentar, nos seguintes termos: “§1-A Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado”.

O Constituinte estabeleceu essa distinção objetivando dar tratamento diferenciado a quem possui esses créditos, haja vista que, dada a sua natureza alimentar, ou seja, de que provêem alimentos, devem recebê-los antes dos demais créditos.

Nessa linha de raciocínio, entendemos ser correto o entendimento de que os honorários também devam ser considerados como verba de natureza alimentar, haja vista que são, na verdade, os “salários” dos profissionais liberais, como advogados, médicos, dentistas, psicólogos, contadores, entre outros. É retribuição, pagamento feito aos profissionais liberais. O profissional liberal vive do que recebe como verba honorária. Embora não tenha a natureza jurídica de salário, a finalidade é a mesma.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 146.318-SP, proferiu Acórdão que foi assim ementado: CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIO. PAGAMENTO NA FORMA DO ART. 33, ADCT. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS E PERICIAIS: CARÁTER ALIMENTAR. ADCT, ART. 33. I. Os honorários advocatícios e periciais têm natureza alimentar. Por isso, excluem-se da forma de pagamento preconizada no art. 33, ADCT. II. R.E. não conhecido.

Na oportunidade, o Ministro CARLOS VELLOSO votou da seguinte forma: “Os honorários advocatícios e periciais remuneram serviços prestados por profissionais liberais e são, por isso, equivalentes a salários. Deles depende o profissional para alimentar-se e aos seus, porque têm a mesma finalidade destes. Ora, se vencimentos e salários têm natureza alimentar, o mesmo deve ser dito em relação aos honorários”.

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 170.220-6 – SP, em que foi Relator o Ministro MARCO AURÉLIO, tendo o Acórdão publicado no Diário da Justiça de 7 de agosto de 1998, dispôs nos seguintes termos: “HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – NATUREZA – EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA. A teor do disposto nos artigos 22 e 23 da Lei nº 8.906/94, os honorários advocatícios, incluídos na condenação, pertencem ao advogado, consubstanciando prestação alimentícia, cuja satisfação pela Fazenda ocorre via Precatório, observada ordem especial restrita aos créditos de natureza alimentícia”.

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial 204.066-RJ5, entendeu que as comissões recebidas por leiloeiro também são impenhoráveis, estando compreendidas na expressão salário, prevista no inciso IV do artigo 649 do Código de Processo Civil. Salientou, ainda, que a impenhorabilidade é em decorrência da presunção legal de que o salário se destina à manutenção de quem o aufere.

Daí pode-se concluir que o rol do §1-A do artigo 100 da Constituição Federal é exemplificativo, e não taxativo como defendem alguns juristas.

O Professor Hely Lopes Meirelles, quando fala sobre os vencimentos dos servidores públicos, ensina: “A natureza alimentar dos vencimentos não permite sejam eles retidos pela Administração, nem admite arresto, seqüestro ou penhora, consoante dispõe o artigo 649, IV, do CPC, a que fazem remissão os arts. 821 e 833 do mesmo diploma legal, relativamente ao arresto e ao seqüestro6”.

A razão de ser da tese alimentar consiste em negar aos vencimentos a conotação de simples retribuição pelos serviços prestados por parte dos servidores públicos. Destina-se, preponderantemente, a garantir a subsistência do servidor e da sua família, pelo que se consolida a sua natureza jurídica especial.

O art. 78 dos ADCT possibilitou que os créditos pendentes de pagamento às Fazendas Públicas e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, sejam parcelados em até dez anos. Ficaram ressalvados os de pequeno valor, os que já foram parcelados (art. 33 ADCT), os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os que forem originários de desapropriação de imóvel residencial do credor e os créditos de natureza alimentícia.

Dessa forma, a distinção da natureza dos créditos é altamente relevante, não só pela ordem preferencial de pagamento que deve ser obedecida em favor dos que possuem natureza alimentícia, como também em razão da impossibilidade de fracionamento, em até dez anos, de verbas dessa natureza. Significa dizer que os créditos de natureza alimentar deverão ser pagos de uma só vez.

5. DA PREFERÊNCIA DOS CRÉDITOS DE NATUREZA ALIMENTÍCIA NA ORDEM DE PAGAMENTO DE PRECATÓRIO.

Além da distinção entre créditos de natureza alimentícia e não-alimentícia, o art. 100 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu a preferência dos créditos alimentares em detrimento dos demais.

O art. 100 estipula o seguinte: Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

À prima facie, infere-se que os créditos de natureza alimentícia não estariam submetidos à ordem de precatórios, mas tão-somente os demais créditos desprovidos dessa origem. Tanto é que houve inúmeras decisões judiciais determinando o pagamento dessas dívidas independentemente da ordem de precatórios, mediante seqüestro.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal, a quem compete interpretar a Constituição Federal, já pacificou a questão, definindo que as prestações de caráter alimentar submetem-se ao regime constitucional dos precatórios7. Assim, o crédito alimentício segue uma ordem própria, paralela à ordem relativa às verbas desprovidas dessa natureza, com preferência sobre àquela.

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, editou a súmula 144 que dispõe: “Os créditos de natureza alimentícia gozam de preferência, desvinculados os precatórios da ordem cronológica dos créditos de natureza diversa”.

Após reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, a matéria atualmente está pacificada no sentido de que os créditos de natureza alimentícia também devem ser pagos por meio de precatórios, desvinculados dos demais créditos e na ordem cronológica de sua apresentação.

Além da preferência na ordem de pagamento, os créditos de natureza alimentar, conforme se infere do art. 78 dos ADCT da Constituição Federal, acrescido pela EC nº 30/2000, não podem ser fracionados sem a concordância do credor, devendo o pagamento ser feito de uma só vez.

A Constituição do Estado de São Paulo, no seu artigo 57, § 3º, já previa que o crédito de natureza alimentar deve ser pago de forma atualizada e de uma só vez. A constitucionalidade do dispositivo foi questionada pelo Governo Estadual, sob o fundamento de que estaria havendo afronta ao sistema de precatórios (§ 1º do artigo 100 da CF) e do orçamento (§ 8º do art. 165 da CF).

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 189.942-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, enfatizou inexistir qualquer situação de conflito hierárquico-normativo entre o preceito em questão e as regras constantes da Constituição Federal.

A Lei 10.482, de 03 de julho de 2.002, estabeleceu outra prerrogativa, permitindo que 50% dos depósitos judiciais e extrajudiciais de valores referentes a processos litigiosos ou administrativos em que a Fazenda dos Estados ou do Distrito Federal seja parte, fossem repassados à conta única do Ente Federado8, sendo que esses valores seriam exclusivamente aplicados no pagamento de precatórios judiciais relativos a créditos de natureza alimentar.

Observa-se, assim, que há uma forte tendência em dar-se tratamento privilegiado aos créditos de natureza alimentar, inclusive sem a necessidade de expedição de precatório para pagamentos dessas verbas9.

6. DA CESSÃO DE CRÉDITOS

A cessão de crédito é uma das formas de transmissão das obrigações. Quanto à origem, a cessão pode ser decorrente de lei, de decisão judicial e convencional. Será objeto de estudo a cessão de crédito convencional, que decorre do exercício da autonomia da vontade do credor, de forma onerosa ou gratuita, e está prevista no art. 286 do Código Civil de 2.002.

É negócio jurídico bilateral pelo qual o credor transfere a outrem seus direitos na relação obrigacional. Tem natureza contratual. A transmissão das obrigações, inclusive direito de créditos, também se dá por causa mortis, que é objeto do direito das sucessões. A cessão de crédito, propriamente dita, é ato inter vivos, inerente ao direito das obrigações.

Conforme ensinamento da Professora Maria Helena Diniz10, a cessão de crédito é um negócio jurídico bilateral, gratuito ou oneroso, pelo qual o credor de uma obrigação (cedente) transfere, no todo ou em parte, a terceiro (cessionário), independente do consenso do devedor (cedido), sua posição na relação obrigacional, com todos os acessórios e garantias.

Conforme ensina Sílvio de Salvo Venosa11, a cessão tem pontos de contato com a compra e venda, tanto que o código francês cuida do instituto no mesmo capítulo. No entanto, na compra e venda existe apenas um comprador e um vendedor. Na cessão de crédito há necessariamente as três figuras já apontadas. A compra e venda objetiva sempre um bem material. A cessão é sempre de direitos, assim entendidos bens imateriais. Na cessão, pois, não vamos encontrar a possibilidade de a avença servir de veículo para a aquisição de propriedade.

Com relação à cessão de crédito, o art. 29012 do Código Civil vigente, que incide sobre a questão, estipula: A cessão de crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.

Dessa forma, tratando-se de cessão de direito de crédito, inclusive de precatório, onde figura como devedora a Fazenda Pública, é necessária a sua notificação, judicial ou extrajudicial, para que haja ciência do negócio jurídico, e para que seja eficaz com relação ao devedor. Sendo firmada a cessão entre o cedente e o cessionário, sem a necessária notificação do devedor, o negócio jurídico é válido, mas somente produz efeitos entre as partes negociantes. A notificação também é importante porque o devedor, quando notificado, pode alertar o cessionário que tem exceções a opor, como por exemplo, a exceptio non adimpleti contractus.

Além da necessidade da notificação do devedor, para que a cessão tenha eficácia com relação ao mesmo, também devem estar presentes os requisitos de validade dos atos jurídicos previstos no art. 104 do novo Código Civil, ou seja, capacidade das partes, objeto lícito e forma prescrita ou não-defesa em lei.

O artigo 286 do novo Código Civil estabelece que o credor somente pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a convenção com o devedor.

Como exemplos de vedações legais podemos citar os créditos decorrentes de alimentos, conforme expressa disposição do art. 1.707 do Novo Código Civil que prevê de impossibilidade de compensação, penhora ou cessão. De plano deve se distinguir os alimentos dos créditos de natureza alimentar. Alimentos são verbas devidas em razão de parentesco, casamento ou convivência, previstos no artigo 1.694 do Código Civil.

Outro exemplo está previsto no artigo 11413 da Lei 8.213/1991 (Lei que dispõe sobre os planos de benefícios da previdência social). Este artigo proíbe que os benefícios previdenciários sejam objeto de penhora, arresto ou seqüestro, estabelecendo a nulidade de pleno direito do ato jurídico que tenha por objeto a sua venda ou cessão.

Assim, são proibições decorrentes de expressa disposição legal. Todavia, não há dúvida de que essas vedações, previstas em lei, são influenciadas pela natureza da obrigação.

Também não podem ser cedidos os créditos que foram penhorados, conforme expressamente dispõe o art. 298 do vigente Código Civil.

Com relação à cessão de créditos incidem, ainda, as restrições previstas no art. 497, incisos II, III e IV e art. 1.749, III e 1.774, todos do Novo Código Civil.

O artigo 497 caput e § único, estabelecem que não podem ser comprados ou cedidos, sob pena de nulidade, ainda que em hasta pública: I- pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens confiados à sua guarda ou administração; II- pelos servidores públicos, em geral, os bens ou direitos da pessoa jurídica a que servirem, ou que estejam sob sua administração direta ou indireta; III – pelos juízes, secretários de tribunais, arbitradores, peritos e outros serventuários ou auxiliares da justiça, os bens ou direitos sobre que se litigar em tribunal, juízo ou conselho no lugar onde servirem, ou a que se estender a sua autoridade; IV – pelos leiloeiros e seus prepostos, bens de cuja venda estejam encarregados.

O artigo 1.749, inciso III, estabelece que: não pode o tutor, sob pena de nulidade, ainda que tenha ordem judicial, constituir-se cessionário de crédito ou de direito, contra o menor. O artigo 1.774, por sua vez, determina a aplicação das disposições contidas na tutela à curatela.

Além das hipóteses de vedação legal e da previsão de se convencionar a impossibilidade de cessão, o artigo 286 dispõe, ainda, que não podem ser cedidos os créditos quando se opuser a natureza da obrigação.

Sílvio Rodrigues, quando trata do assunto, preconiza que “são incedíveis, por sua natureza, os direitos personalíssimos ou aqueles créditos vinculados a um fim de caráter assistencial como, por exemplo, o crédito alimentício14”.

Conforme ensina Orlando Gomes, “aplica-se a regra de que não pode ser cedido o crédito impenhorável”15.

De acordo com a regra citada por Orlando Gomes, são impenhoráveis na forma prevista no artigo 649 do Código de Processo Civil e, portanto, incedíveis, os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários públicos, o soldo e os salários, salvo para pagamento de prestação alimentícia. Também as pensões percebidas dos cofres públicos ou de institutos de previdência.

Com relação à (im)possibilidade de cessão em decorrência da natureza da obrigação, a questão ainda é nebulosa, não havendo um critério razoável que as diferencie, haja vista as inúmeras situações possíveis.

No mesmo sentido, J. M. Carvalho Santos: “Não é possível, como se vê, ocultar a dificuldade de que se reveste a questão de saber quando o crédito é incedível em razão da natureza da obrigação. Até agora os doutores não conseguiram se entender. Em vão têm tentado formular regras gerais, ora equiparando a cessibilidade à transmissibilidade por sucessão ora como cessíveis unicamente aquelas obrigações, na execução das quais os credores podem intervir. (…) O acertado, por conseguinte, é não estabelecer regras gerais, nem fixar nenhum critério absoluto, procurando-se em cada caso, tendo em vista a natureza do direito ou do crédito, descobrir, pela sua natureza particular, ou pela analogia com um outro direito ou crédito visado explicitamente por texto formal de lei, a cessão não deve ser proibida”16

7. DA CESSÃO DOS CRÉDITOS ORIUNDOS DE PRECATÓRIO

A cessão de créditos provenientes de precatórios tornou-se negócio jurídico habitual, sempre com deságio considerável em favor dos cessionários.

Conforme enfatizou J. M. Carvalho Santos, no trecho acima transcrito, é extremamente difícil saber quando o crédito é cedível em razão da natureza da obrigação, sugerindo, a análise de cada caso, tendo em vista a natureza do direito ou do crédito, descobrir, pela sua natureza particular, ou pela analogia com um outro direito ou crédito visado explicitamente por texto formal de lei, a cessão não deve ser proibida.

O art. 78 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescido pela Emenda Constitucional nº 30/2000, permitiu expressamente a cessão de precatório, não fazendo qualquer distinção quanto à natureza dos créditos que podem ou não ser cedidos.

Com relação a esse ponto, entendemos que a cessão do crédito de precatório é permitida por expressa disposição normativa (art. 78 ADCT), independentemente de sua natureza, não podendo a ela se opor o devedor. Ressalte-se, todavia, que para produzir efeitos com relação à Fazenda Pública devedora, esta deve ser notificada. Não existindo a notificação da cessão, a Fazenda Pública deverá efetuar o pagamento ao credor originário.

O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o ROMS 12735-RO, sinalizou no sentido da possibilidade da cessão, nos seguintes termos: “em se tratando de créditos provenientes de condenações judiciais, existe permissão constitucional expressa assegurando a cessão dos créditos traduzidos em precatórios (ADCT, Art. 78). Se assim acontece, não faz sentido condicionar a cessão ao consentimento do devedor – tanto mais, quando o devedor é o Estado, vinculado constitucionalmente ao princípio da impessoalidade17”.

No referido acórdão, o Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso ordinário interposto, o qual tinha por finalidade compensar débito tributário com créditos oriundos de precatório, adquiridos por meio de cessão. Outrossim, nesse julgado, o STJ permitiu expressamente a cessão e não fez qualquer referência à natureza dos créditos cedidos.

De toda sorte, e em razão da freqüente formalização das cessões de créditos oriundos de precatório, por certo a conseqüência com relação aos créditos de natureza alimentícia, caso sejam cedidos, será a mesma: a perda da natureza alimentícia dos créditos objeto de transferência.

8. A PERDA DA NATUREZA ALIMENTÍCIA DOS CRÉDITOS DE PRECATÓRIO OBJETO DE CESSÃO.

Conforme salientado anteriormente, os créditos de natureza alimentícia constantes de precatório gozam de preferência relativamente aos demais, seja pela prioridade na ordem de pagamento, seja na impossibilidade de fracionamento, conforme estabelece o art. 78 do ADCT, seja, também, na maior disponibilidade de recursos, exclusivamente para pagamento desses créditos.

Essas prerrogativas justificam-se por sua natureza, cujo propósito é suprir o credor das necessidades básicas, no sentido de sobrevivência, aí inseridos alimentação, moradia, vestuário, lazer, entre outros. Daí constatar-se que o critério utilizado pelo Legislador Constituinte, para classificar que créditos teriam a natureza alimentícia, foi o da sua finalidade originária.

A característica comum dos créditos elencados no § 1-A do Art. 100 da Constituição Federal é a de que todos, originalmente, destinam-se à subsistência dos credores, ou seja, a finalidade dos créditos alimentares é justamente proporcionar ao credor a sua própria manutenção e a da sua família.

Se o credor de verba alimentícia possui crédito dessa natureza, certamente deixou de recebê-lo no passado. O ideal mesmo é que esses créditos fossem pagos sem a necessidade de expedição de precatório.

Assim, a natureza dos créditos para efeito de pagamento por meio de precatórios é diferenciada em decorrência de sua finalidade: alimentícia ou não.

Por se tratar de disposição Constitucional, às cessões de créditos decorrentes de precatórios judiciários não se aplicam todas as regras do Direito Civil, devendo-se temperar com o propósito pelo qual foi instituída essa diferenciação.

Outrossim, quando se fala em crédito de natureza alimentar, para efeito de pagamento de precatório, leva-se em consideração a sua finalidade. Repita-se que essas prerrogativas justificam-se por sua natureza original, cuja intenção é suprir o credor das suas necessidades vitais.

Não se quer dizer aqui, que caso os valores consignados em precatórios não sejam pagos, os seus credores ficariam sem alimentação, moradia, vestuário, lazer, até porque referem-se à verbas não pagas no momento próprio. Entretanto, trata-se de uma presunção normativa de status Constitucional, decorrente, obviamente, de sua origem.

Nessa linha de raciocínio, os créditos que tenham originariamente natureza alimentar, e que sejam objeto de cessão voluntária, fogem da regra geral de transmissão, perdendo essa característica. Essa desnaturação justifica-se em razão da perda da finalidade do crédito alimentar cedido.

Na realidade, a distinção levada a efeito pelo Poder Constituinte Derivado visa proporcionar ao credor originário a prerrogativa de receber antes dos demais créditos. Se a preferência, por presunção normativa constitucional, se dá justamente para prover o credor originário, não há motivo razoável para se outorgar essa preferência ao adquirente cessionário, mesmo quando a transmissão for a título gratuito.

Outrossim, quase sempre as cessões de crédito de precatório são negócios especulativos, que servem ao propósito de lucro, inclusive quando o cessionário é pessoa física. É improvável a hipótese de se adquirir determinado crédito oriundo de precatório sem a finalidade de auferir lucro. Quando o cessionário for pessoa jurídica, não há qualquer dúvida quanto à descaracterização do crédito, pois dificilmente a pessoa jurídica será beneficiária de verba alimentar, por total incompatibilidade com a sua finalidade.

Como conseqüência dessa descaracterização, o crédito que inicialmente possuía natureza alimentar, deixa de tê-lo e, assim, poderá ser pago em até 10 anos, conforme faculta o art. 78 do ADCT da Constituição Federal, e ainda deverá ser submetido à ordem comum de pagamento.

Conforme estabelece o art. 100 da Constituição Federal, o pagamento de débitos de precatórios deve ser feito exclusivamente na ordem cronológica de apresentação, não havendo, portanto, outra forma de pagamento.

Eventual possibilidade de compensação desses créditos, desde que devidamente autorizada por lei, também deve obedecer a ordem de pagamento, porquanto esse expediente provocaria o rompimento da ordem cronológica de preferência.

Com efeito, a sistemática da execução contra a Fazenda Pública e do pagamento por meio de precatórios está intimamente ligada ao primado da IGUALDADE, colocando os titulares de créditos judiciais contra a Fazenda Pública em posição de total isonomia no recebimento do que lhes é devido. Recebe primeiro aquele que primeiro apresentar a respectiva requisição.

De fato, o critério básico e intransponível para se estipular quais créditos devem ser pagos prioritariamente é simples e claramente positivado na Constituição Federal: o precatório mais antigo tem que ser pago antes do mais recente, inclusive sob pena de intervenção e de seqüestro18.

Na hipótese de utilização de crédito adquirido por meio de cessão, para efeito de compensação, além da necessidade da existência de lei, a compensação somente seria possível à época do pagamento do título, dentro da ordem de preferência, neste caso, a não-alimentar. Admitir o contrário seria “fulminar o princípio constitucional da ordem cronológica dos precatórios”19.

9. CONCLUSÕES

Diante das considerações contidas neste estudo, concluímos que:

1) os créditos de natureza alimentícia vêm recebendo tratamento privilegiado da legislação, haja vista o seu propósito: manutenção e subsistência do credor;

2) os créditos oriundos de precatório que tenham natureza alimentar não podem ser parcelados (art. 78 ADCT), devendo ser pagos de uma só vez, ter preferência na ordem de pagamento e, de lege ferenda, sequer necessitarão de expedição de precatório para pagamento, conforme já se fez com os créditos considerados de pequeno valor;

3) a cessão de créditos provenientes de precatórios foi expressamente prevista no artigo 78 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, independente de sua natureza;

4) os créditos de precatórios, quando tiverem natureza alimentar e forem objeto de cessão, deixam de ter essa característica, pois perderiam a finalidade presumida: manutenção e subsistência do credor originário;

5) Como conseqüência da perda da natureza alimentícia, os créditos de precatórios cedidos ficariam desprovidos das suas prerrogativas, passando a ter tratamento comum, inclusive sendo submetidos à ordem de pagamento dos créditos não-alimentícios.

Notas:

1 Art. 100 CC – Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar; Art. 649, I do CPC – São absolutamente impenhoráveis: I- os bens inalienáveis, (…)

2 Art. 101 CC – Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.

3 art. 730 foi modificado pela MP 2.180-35 oportunidade em que o prazo para oferecer embargos do devedor passou de 10 para 30 dias.

4 art. 182. Os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão na ordem de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, sendo vedada a designação de casos ou pessoa nas verbas legais.” §único. Esses créditos serão consignados pelo Poder Executivo ao Poder Judiciário, recolhendo-se as importâncias no cofre dos depósitos públicos. Cabe ao Presidente da Corte Suprema expedir as ordens de pagamento, dentro das forças do depósito, e, a requerimento que alegar preterição de sua precedência, autorizar o seqüestro da quantia necessária para o satisfazer, depois de ouvido o Procurador-Geral da República.

5 STJ – Resp 204.066-RJ, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, 3ª Turma.

6 Direito Administrativo Brasileiro, página 448, 26ª edição, RT, São Paulo, 2001.

7 “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o alcance da norma inscrita no caput do art. 100 da Constituição, firmou-se no sentido de considerar imprescindível, mesmo tratando-se de crédito de natureza alimentícia, a expedição de precatório, ainda que reconhecendo, para efeito de pagamento do débito fazendário, a absoluta prioridade da prestação de caráter alimentar sobre os créditos ordinários de índole comum. Precedentes.” (STF – RE 188285-9-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 1/03/96)

“As prestações de caráter alimentar submetem-se ao regime constitucional dos precatórios, ainda que reconhecendo a possibilidade jurídica de se estabelecerem duas ordem distintas de precatórios, com preferência absoluta dos créditos de natureza alimentícia, de ordem especial, sobre aqueles de caráter meramente comum, de ordem legal.” (STF- RE 195042-1-SP, Min. Celso de Mello, DJU 24/11/95)

8 O art. 1º da Lei 10.482/2002 limitou o repasse aos depósitos efetuados no período de 1º de janeiro de 2001 à 03 de julho de 2002.

9 Nesse sentido, Projeto de Lei do Senado Federal nº 255/2000, de autoria do então Senador Paulo Hartung (atual Governador do Estado do Espírito Santo), em fase de tramitação na Câmara dos Deputados.

10 Código Civil Anotado, 5ª edição, São Paulo: Saraiva, 1999.

11 Direito Civil, Vol. II, 3ª edição, Ed. Atlas, 2003.

12 Art. 1.069 do Código Civil de 1916.

13 STJ – EREsp 429581-RJ – A terceira seção do STJ considerou nula cláusula de mandato que tinha por objeto a cessão de créditos previdenciários, haja vista a expressa vedação contida no art. 114 da Lei 8.213/91.

14 Direito Civil, Parte Geral das Obrigações, vol. II, Saraiva.

15 Orlando Gomes, Obrigações, Editora Forense, 10ª edição, p. 207.

16 J.M. Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, vol XIV, pág. 333.

17 STJ – ROMS 12735/RO, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1ª Turma, DJ 23/09/2002.

18 O STF, no julgamento de recursos nas Reclamações 2182 e 2143, firmou entendimento de que a quebra na ordem cronológica de pagamento de precatório autoriza o Poder Judiciário a determinar o seqüestro de verbas públicas a pagar às pessoas que se sentiram lesadas.

19 Nesse sentido STJ-Resp 157 913-RS, Min. Franciulli Netto, DJ 31/03/2003.

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